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Fragmentos filosóficos #13 – Rosset e o princípio de crueldade

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Este é o décimo terceiro de nossos Fragmentos filosóficos, uma série composta por trechos selecionados e comentados (sob a curadoria de Marcos Beccari e Daniel B. Portugal), com a proposta de apresentar filósofos em suas próprias palavras. O trecho abaixo foi retirado do livro O princípio de crueldade de Clément Rosset (Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 22). Seleção e comentários de Marcos Beccari.

O homem é o ser capaz de saber o que, por outro lado, é incapaz de saber, de poder em princípio o que é incapaz de poder em realidade, de encontrar-se confrontado ao que é justamente incapaz de afrontar.

Saber que um dia morreremos não nos “ajuda” a morrer. Querer viver por mais tempo apenas atesta a inutilidade desse saber, protelando-o. Em última instância, saber disso tampouco nos fornece pistas de como isso será experimentado por nós. O que fazer com um saber que não serve de nada? E para que, afinal, ele deveria servir?

O engodo da questão consiste em, independentemente da resposta, querer justificar uma realidade pressuposta como insuficiente, ou seja, dada como “absurda” por si mesma, necessitando então de alguma resposta exterior a ela: Deus, Verdade, Justiça etc.

Pintura de Kim Cogan.

Fatos absurdos pressupõem um sentido ausente, como uma ordem geral que, de repente, veio a falhar: o sol não nascer, por exemplo, no dia seguinte. Mas e se o sentido ausente, na verdade, não existisse em lugar algum? Ou melhor: e se todo sentido não passasse de invenção humana? Como podemos dizer que uma pedra é absurda, se não há consciência, sentido ou razão de ser para a pedra (e para qualquer outra existência)?

É nesse sentido que, em O princípio de crueldade, Rosset critica as filosofias que consideram o real insuficiente, em especial aquelas que tomam o “absurdo” como premissa segundo a qual estamos todos condenados à incompletude: Kierkegaard, Kafka, Lacan etc. Ora, não é o “absurdo” que faz com que o real fique sem sentido. É a própria noção de sentido que é estranha ao real – que, uma vez desprovido de sentido, não carece de sentido algum.

Se não há sentido no real, não é porque ele é incompleto ou absurdo, mas porque ele é, pelo contrário, completo em sua insignificância. Em vez de absurda, pois, “a realidade é cruel – e indigesta – a partir do momento em que a despojamos de tudo o que não é ela” (idem, p. 18). Reconhecer tal “crueza” implica perceber que a realidade nunca é absurda; ela é apenas a única que há: a mais cruel e, ao mesmo tempo, a mais inocente.

Retomando a questão inicial, de nada serve saber que um dia morreremos, embora o saibamos. Porque não há remédio para uma vida que não se justifica por nenhuma razão e cujo destino é o nada. Resta-nos vivê-la por suas paixões, pelos sofrimentos, pela experiência cruel e alegre de sabermos que ela ainda não acabou.


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